quinta-feira, maio 13, 2010

 

De muitos, (faça-se) um

E de repente o estômago sobe à boca, e o mar inunda os olhos e a alma fica cheia, tão cheia, e o mundo passa a fazer sentido e o Benfica volta a casa e nós estamos lá à espera, há anos de porta entreaberta a olhar para a estrada a ver se ele volta.


Gosto de dizer – faço alarido disso – que não sou um homem religioso, do alto do meu orgulho arrogante de quem acha que é auto-suficiente na sua carapaça bem estruturada, no seu aprumado sistema de pensamento e valores.
Minto. Minto, tenho mentido a mim próprio e minto a quem mo ouve dizer. Percebo agora que professo o Benfica como uma fé, entranhada na alma e imorredoira, e vivo desesperadamente agarrado a ela, como se fosse um amuleto que me protegesse do mundo (o que, na verdade, é).

Quando o Benfica cumpre o seu destino, quando ganha, parece que o Universo se alinha e que de repente tudo passa a fazer sentido, tudo passa a estar no seu lugar, tudo ganha ordem. Quando o Benfica cumpre o seu destino, o Mundo – torto e imperfeito como é – parece uma criação harmoniosa e justa, simples no seu desígnio, honesta no seu âmago. As coisas ficam mais nítidas, as cores mais vivas, o ar mais leve, a respiração mais fácil. Quando o Benfica cumpre o seu destino, o Benfica volta, na verdade, ao lugar onde deve estar, ao lugar de onde nunca deve sair, ao lugar que sente a sua falta, que clama por ele quando ele - o Benfica – lá não está.

Domingo à noite, enquanto largava à sorte - pelos ares da Lisboa que dançava de corpo enroscado no Benfica campeão – o grito reprimido que levo dentro do peito há mais tempo do que devia, encontrei – encontrámos – um mar de gente que queria, que precisava como de ar para os pulmões, de derramar a alma por sobre a cidade pintada de vermelho. De entre essa gente, muita veio falar connosco, e a todos eles envio um abraço mais forte do que aquele que naquela altura consegui dar - a luta foi árdua, isto saiu-me do corpo e do espírito, e eu sou franzino.
Velhos, novos, altos, baixos, de todas as profissões e estratos sociais, de todos os credos, convicções, ideais políticos, raças, nacionalidades. Tímidos, extrovertidos, cultos, simples, despreocupados, resguardados, optimistas, pessimistas, sãos, doentes, puros, menos puros. O Benfica democratiza a existência humana, mais do que alguma outra invenção do espírito humano. Acredito piamente nisto. Ironia que tenhamos nascido num tão pequeno berço – este país, promessa adiada amordaçada pela inveja – para tamanha ambição à conquista do Mundo. Já o disse mais do que uma vez, digo-o (escrevo-o) outra vez (a verdade merece ser celebrada): o Benfica é um raio de luz, um renascer das melhores qualidades que jaziam adormecidas na alma colectiva de um país reduzido a uma insignificância amordaçante. O Benfica reuniu o que de melhor havia em nós e, fruto de muita luta, suor, sangue, sacrifício e honra, voltou a dar Portugal ao Mundo, enquanto se tornou infinitamente maior que Portugal. Apesar de ter cá nascido, o Benfica é do Mundo – não se esgota numa cidade, numa região, num país - porque o Mundo aprendeu a respeitar o Benfica e nele reconheceu as virtudes que elevam a existência humana. O Benfica de hoje, sustentado neste passado glorioso, projecta-se no futuro, fiel (fiel, caramba!) a tudo o que o construiu.

Toda esta gente, este mar que dá a volta ao Mundo, não é do Benfica por acaso. É do Benfica porque o Benfica é são, porque o Benfica une, porque ser do Benfica é um orgulho sem fim, mesmo nas horas mais negras, quando o futuro parece um poço escuro sem fim. Porque ser do Benfica não é só ser melhor que os outros, jogar de peito aberto, dar tudo, sem quartel, morrer com o emblema cravado na carne. É um modo de vida, é ser mais alto (do que os homens, do que os outros, do que tudo), é ter cá dentro uma chama imensa que nos ensina a ser grandes – muito, muito grandes – nas vitórias e grandes nas derrotas.

O Benfica é tudo isto, é todos nós, é o um que resulta da imensidão de muitos. Quando, nas bancadas, as nossas almas se unem num grito comum, lancinante e arrebatador, que carrega o Benfica, somos um. E lá em baixo, a equipa, que bebe essa chama, esse apelo, essa invocação, mais não é do que um prolongamento – a espada que brandimos – do Benfica que somos todos nós (aquelas pernas lá em baixo são as nossas pernas, aqueles pulmões são os nossos pulmões). É assim que sinto o Benfica. Uma manta tecida por uma miríade de vontades que me aquece nas horas escuras e frias, uma aragem soprada por milhões de almas que me refresca quando o calor me amordaça, um farol de milhões de corações encarnados que me alumia o caminho quando a noite me sufoca.

Era isto que me inundava a alma quando as minhas pernas – num esforço transformado em leveza pela felicidade - me levavam pelos caminhos vermelhos desta cidade enamorada pelo Benfica.

Naquele imenso mar de gente que jorrava do estádio como um rio e cujas almas ameaçavam romper o corpo, há um benfiquista que pergunta se pode dar um abraço. É pequeno, humilde, tenaz, e tem a felicidade estampada num rosto onde consigo ver um mapa de uma vida inteira feita a pulso. Indiferente à pergunta, solta o abraço. Dou-o, sentido, emocionado. Somos todos da mesma família, somos todos filhos da Águia (somos todos irmãos que não sabíamos que tínhamos, escrevi uma vez). Por entre elogios ao programa e simpáticas e sentidas palavras sobre como gosta de nos ver e ouvir, diz, não sem alguma mágoa: ‘um dia também gostava de ir à televisão contar algumas histórias minhas. Passei por muitas dificuldades’.

‘Passei fome para apoiar o Benfica’. ‘Passei fome para apoiar o Benfica’, diz-me.

Paro. Não sei o que dizer, o que responder a isto. Quero dizer-lhe que não precisa de ter fome nunca mais, mas não o sei fazer: as palavras estão-me algures entaladas no corpo, sequestradas pela crueza da devoção cravada no que ouvi.
Que estranha forma de vida é esta que nos impele a escolher a Águia, em sacrifício absoluto do corpo? O que é isto, de que é feita esta gente, quem são, de onde vêm? Que doce e sofrida existência é esta que nos carrega pela vida à revelia de tudo o resto, em luta com o dia a dia e com as necessidades mais cruas? O que é, como se explica, de onde vem esta chama que nos faz desafiar o destino, arriscar coisas que provavelmente não deveríamos arriscar, no limite, em permanente sacrifício?

‘Quem são, de onde vêm’, pergunta-se? Porra: são a minha gente, vêm de onde eu vim.

A fome que ele tem – eu sei, também é a minha - é mais forte do que a fome que o corpo grita. E esta, apenas o Benfica pode saciar.
Esta gente que tudo dá merece tudo. Tudo. Tudo. Este campeonato é, primeiro e acima de tudo, para eles.

Somos campeões. Dignos, justos, sem mácula. Com honra, suor, sangue e sacrifício, honrando a nossa História e todos os que a fizeram.
E na hora da vitória, descubro, com uma claridade perturbadora, que – eu que vivo o Benfica ‘de língua afiada, coração na boca e espada na mão, sem amarras, sem grilhões’ - não quero, não tenho a necessidade, não sinto a premência de agitar a nossa glória em frente a todos aqueles canalhas que nos cuspiram em cima, que nos ofenderam, que usaram tudo e de tudo para nos impedir de cumprir o destino, para evitar que se fizesse justiça. Curiosamente, percebo que não preciso sequer de invocar essa gente: o pior castigo é deixá-los a esbracejar no fel em que se afogam. Chegado aqui, o amor ao Benfica não deixa espaço para mais nada. Lá está: o Benfica faz de mim uma pessoa melhor (como se não lhe tivesse já razões de agradecimento de sobra).

Passa o tempo. A poeira assenta, as lágrimas secam, a alma sacia-se. Solto um suspiro do tamanho do Mundo. O Benfica está em casa.

Apetece-me abraçar novamente quem abracei pelas ruas. Abraço-os a todos daqui.
Um abraço do tamanho do Benfica – ou seja, do tamanho do Mundo – para todos os benfiquistas que, no fundo, mais não são que o meu – o nosso - Benfica.

E, por fim, um abraço sentido e fiel a quem tudo isto proporcionou. Não tenho memória curta e não sou de lealdades volúveis. Estaria e estarei aqui, com o mesmo abraço, nas horas mais difíceis, como sempre estive (desde o início, de corpo e alma).
Um abraço ao presidente Luís Filipe Vieira pela visão, pela coragem e pela liderança determinada, um abraço ao Rui Costa pelo benfiquismo traduzido em gestão desportiva digna do melhor e maior clube do mundo, um abraço a toda a estrutura directiva, onde há gente que tenho a honra de ter como amigos. Um abraço ao Jorge Jesus por me devolver o Benfica ao Benfica, por me saciar a fome e por descobrir que sempre foi benfiquista e não o sabia. Um abraço a todos os jogadores, que honraram a camisola cor de sangue e me fizeram sonhar.
O Benfica que temos hoje, construído com visão, coragem e muito sacrifício, permite-me dizer, sem qualquer sombra de dúvida:

Isto, meus amigos, companheiros de sofrimento, gente que vive com a Águia na alma, é só o início.

VIVA O BENFICA!!!

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