sexta-feira, novembro 04, 2005

 

Mea culpa


Bom, parece-me que hoje já estou em condições de falar sobre o malfadado jogo de quarta-feira, esse irónico ensaio sobre a injustiça que teve lugar no Estádio da Luz.

Quero aqui veementemente declarar que a derrota não tem como culpados os jogadores ou o treinador, ou qualquer outro aspecto associado ao jogo. A culpa não é da ineficácia dos atacantes, nem da forma como se deixou o jogador do Villareal rematar livremente do meio campo, nem do jovem Nereu, que foi incapaz de defender o remate.
A culpa, custa-me muito admiti-lo, é total e inteiramente... minha.
A culpa é clara e inequivocamente minha porque saí de casa e me esqueci completamente de deixar um dos cachecóis (o com as listas vermelhas e brancas, entrecortadas com listas negras mais finas) no canto superior esquerdo (como quem entra) da mesa da sala, dobrado em três (com o emblema para cima) e virado para a televisão. Ah pois. Isto não é uma manifestação patética de superstição primária, é um facto científico.
Após a derrota em Manchester, em que este cachecol específico esteve, como os demais, espalhado nos sofás da sala, percebi que havia que fazer algo. Antes do jogo com o FC Porco uma força inexplicável, como que uma voz distante, fez-me colocar o cachecol das listas nesta posição específica (os restantes, como habitual, espalhados pelos sofás). O modo como esta táctica funcionou na perfeição provocou uma revelação. Daí em diante, cheguei à conclusão que, quer para os jogos fora, quer para os jogos em casa (preparando o cachecol na sua posição ideal antes de ir para o estádio), a estratégia funcionava na perfeição, garantindo-nos uma série de vitórias consecutivas. Reparei também que o êxito estava intimamente associado àquele cachecol específico, podendo até dispensar o uso dos restantes no mobiliário da sala. Os dias passavam alegremente, e as jornadas da Superliga também, e tudo corria de feição. Eu e o cachecol em perfeita harmonia.
Como que a comprovar esta teoria, no jogo com a Naval passei o dia fora e esqueci-me completamente da habitual manobra táctica. Quando cheguei a casa, o Glorioso jogava há minutos e esqueci-me completamente de preparar o cachecol. Os minutos passavam, e na segunda parte os imbecis da Naval marcam um golo. A raiva cresce e solto o habitual chorrilho de impropérios (alguns inovadores), aos berros, durante minutos até chegar perto de um enfarte do miocárdio. Subitamente, faz-se luz!! O cachecol!! Corro a ir buscar o cachecol, dobro-o cuidadosamente e coloco-a na posição devida. Passado 1 minuto o Glorioso empata o jogo. A eficácia da medida provoca-me um arrepio. Foi, contudo, tarde demais. Para o cachecol ter libertado na sua plenitude a energia necessária para uma vitória teria sido necessário colocar o cachecol durante mais tempo (quiçá mesmo no início do jogo).

Até que chegou a malfadada quarta-feira.
Saio de casa de manhã, e ensonado e anestesiado pela violência da hora, coloco o cachecol das listas (e não o do campeão, o que tenho levado) na pasta, para mais tarde o levar ao jogo.
O dia passa. O nervosismo cresce. Depois de almoço lembro-me e retiro o cachecol para o colocar na secretária. Horror! É o cachecol das listas! O mundo parece enevoar-se à minha volta, sinto tonturas, tenho visões do Inferno, vejo monstros, sou assaltado por visões de ranchos folclóricos compostos por elementos com as feições do Avô Cantigas e do Porco da Costa. Tento recompor-me, enquanto suores frios me escorrem pela cara. Não tenho tempo de ir a casa antes do jogo. Moro longe. O horror, o horror!! O que fazer? Faltar ao trabalho o resto do dia e passar a tarde a ir devolver o cachecol ao seu sítio devido e trazer o correcto? Levar este cachecol ao jogo? Sou espancado por pensamentos desesperados ‘talvez nos jogos em casa da Liga dos Campeões funcione levar este cachecol’, ‘e se não levar nenhum? Não, isso não pode ser’, ‘arrisco? Não arrisco?’. O resto da tarde é passado num turbilhão emocional. Decido levá-lo para o jogo. Sinto-me nervoso, como se alguma coisa estivesse mal. O jogo começa, entro num roller coaster emocional. Precipitam-se os pensamentos apocalípticos de cada vez que os cobardes amarelos espanhóis (Those Yellow Bastards) têm a bola. Começa a segunda parte. O Glorioso ataca e joga futebol exuberante. O golo adivinha-se. O Nuno Gomes marca um, mas está fora de jogo. O Benfica joga à Benfica. É empolgante, todo o estádio vibra e uma sensação de poder emana daquela alma colectiva. O Benfica joga, os Yellow Bastards fazem anti-jogo e agarram-se como toxicodependentes ao empate. É nojento e imoral vê-los a perder tempo (uma equipa com Riquelmes, Forláns, José Maris…). Penso, inocentemente e imbuído de uma esperança ancorada no jogo da equipa: ‘talvez o cachecol não interesse, talvez isto seja uma superstição parva, ninguém pode ter tanto azar assim, vamos marcar um golo’. Os Yellow Bastards marcam um golo aos 81 minutos. A culpa é minha. Depois disso percebi que nem sequer iríamos empatar. O cachecol estava comigo, e não no canto superior esquerdo (como quem entra) da mesa da sala, dobrado em três (com o emblema para cima) e virado para a televisão. Ninguém tem assim tanto azar. A culpa é – só pode ser - minha. Só minha.
O regresso a casa é uma agonizante mistura entre um sentimento de culpa sufocante e uma raiva irracional ao destino.
Mea culpa. A nação benfiquista que me desculpe. Carrego esse peso sobre os ombros, como uma cruz, e assumo-o.

p.s. no Domingo, rest assured, o cachecol lá estará no canto superior esquerdo (como quem entra) da mesa da sala

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