sexta-feira, agosto 04, 2006

 

O Bom Gigante


Exactamente porque o Benfica é tudo isto – esta amálgama de memórias e afectos, esta alma colectiva cuja história a projecta no presente e no futuro – e porque o Benfica tem o dever, a obrigação, o imperativo moral de prestar reconhecimento a quem contribuiu para o Benfica ser este mundo que é, tenho alguma dificuldade em perceber a aparente indiferença ao sofrimento de uma das nossas maiores glórias e – genuinamente – um homem bom.
Ressalvo aqui que não sei se estarei a ser injusto por ignorar alguma iniciativa ou forma de apoio que esteja em acção, mas a verdade é que – partindo do pressuposto que nada está a ser feito a nível do Benfica enquanto instituição - não consigo perceber como é que uma das nossas maiores glórias, e – volto a dizê-lo - um homem bom, como é o Bom Gigante José Torres, passa pelo que está a passar sem o carinho e apoio da instituição que ajudou a engrandecer. Não o percebo, e mais, não o consigo enquadrar na matriz de valores que norteia a grandeza do Benfica.
Haja a sensibilidade, o bom senso e a nobreza suficientes para se perceber que o Benfica, exactamente por ter a grandeza e recursos que tem e por força dos valores que o construíram, tem a obrigação moral de providenciar apoio e ajuda, da mesma forma que um amigo de longa data ajudaria a minorar o sofrimento de outro. É até irónico que a particular condição que afecta o Torres o prive da sua memória e o impeça – ou o vá impedindo aos poucos, mas inexoravelmente – sequer de buscar conforto no passado e de reviver os seus tempos de glória.
Se ao Torres o destino o vai privando cobardemente da memória, que o Benfica honre a sua.

Terei alguma parcialidade na apreciação desta situação – afinal, o Torres andou comigo ao colo, privou com a minha família, e quando o fez espalhou humildade, simpatia e amizade – mas não entendo, não consigo entender, à luz da forma como vivo e percebo o que é fazer parte desta alma colectiva, esta abstracção, este alheamento, esta indiferença do Benfica.
Haja jogos de homenagem, haja iniciativas de apoio, doe-se a receita de bilheteira de um qualquer jogo, compre-se menos jogadores medíocres (e poupe-se o dinheiro), utilize-se as infra-estruturas do clube seja de que forma for, até a nível de tratamento médico, caramba – haja o que houver! Até estou disposto a pagar quotas adicionais.
A família – digna e séria – nada pede e não recrimina ninguém. O Torres teve o azar de ser grande numa altura em que o futebol não dava os rios de dinheiro que dá agora, mas terá tido o discernimento suficiente para providenciar um mínimo de conforto e dignidade para si e para a sua família. E até percebo que, num país civilizado, o Estado deverá ser responsável por providenciar aos doentes de Alzheimer o apoio e condições de conforto e minoração do sofrimento.
Mas – apesar de tudo isso - que raio, caramba, não merecerá o Bom Gigante beber um pouco da mística que ajudou a construir? Não terá feito o Torres o suficiente pelo engrandecimento do Benfica para merecer um gesto de carinho, para que se lhe pegue na mão e se lhe tente minorar o sofrimento? Não deverá o Benfica zelar por quem foi operário da sua construção, por quem espalhou o seu nome pelo mundo, por quem tantas alegrias deu de camisola encarnada ao peito, de emblema e águia junto ao coração? Não é da mais elementar justiça, não é isso que os valores do Benfica exigem?

Se de facto estiver a ser injusto, e houver alguma acção ou iniciativa através da qual o Benfica esteja a contribuir para a minoração do sofrimento do Bom Gigante, então aplaudo a sua discrição e a sua existência. Se assim não é, confesso que considero a situação de uma ingratidão indesculpável. Tenho sido um defensor acérrimo da gestão do clube nos últimos anos, da sua brilhante recuperação e da sua dinamização, sempre sob o signo da mística e do respeito pela grandeza e história do clube. É exactamente por isso que não posso deixar de invocar esta situação. Porque, às vezes, uma acção vale mais que mil palavras. E a grandeza e mística do Benfica exigem-na.
Mais: é agora, é urgente. Não adiantará fazer homenagens catárticas para a memória colectiva quando o sofrimento do Bom Gigante já estiver além de qualquer ajuda terrena.

O Benfica, a família benfiquista, tem de cuidar dos seus – é assim que deve ser - e o Torres é um dos nossos e uma peça incontornável da nossa história.

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